Alguém fala errado?
FERREIRA GULLAR
Folha de S. Paulo, 25/9/2005.
Sei muito bem que, de acordo com a linguística moderna, não existem o certo e o errado no uso do idioma
nacional, ou melhor, não existe o errado, o que significa que tudo está certo e que minha antiga professora de
português, que me ensinou a fazer análise lógica e gramatical das proposições em língua portuguesa, era uma
louca, uma vez que a língua não tem lógica como ela supunha e a gramática é de fato um instrumento de
repressão; perdeu seu tempo dona Rosinha ensinando-me que o verbo concorda com o sujeito, e os adjetivos
com os substantivos, como também concordam com estes os artigos, ou seja, que não se deve dizer dois dúzias
de ovos, uma vez que dúzia é palavra feminina, donde ter que dizer "duas dúzias de ovos", o que era, como sei
agora, um ensinamento errôneo ou, no máximo, correto apenas naquela época, pois hoje ouço na televisão e leio
nos jornais "as 6 milhões de pessoas", construção indiscutivelmente correta hoje, quando os artigos não têm mais
que concordar com os substantivos e tampouco com o verbo, como me ensinara ela, pois me corrigia quando eu
dizia "ele foi um dos que fez barulho", afirmando que eu deveria dizer "um dos que fizeram barulho", e me
explicava que era como se dissesse "foi um dos três que fizeram barulho", explicação antiquada, do mesmo modo
que aquela outra referente à regência dos verbos e que eu, burróide, entendi como certo quando, na verdade, o
certo não é, por exemplo, dizer "a comida de que ela necessita" ou "o problema de que falou o presidente", e, sim,
"o problema que falou o presidente", frase que, no meu antiquado entendimento, resulta estranha, pois parece
dizer não que o presidente falou do problema, mas que o problema falou do presidente, donde se conclui que sou
realmente um sujeito maluco, que já está até ouvindo "vozes" e, além de maluco, fora de moda, porque não se
conforma com o fato de terem praticamente eliminado de nossa língua as palavras "este" e "esta", que foram
substituídas por "esse" e "essa", pois sem nenhuma dúvida é uma tolice querer que o locutor da televisão,
referindo-se à noite em que fala, diga "no programa desta noite" em lugar de "no programa dessa noite", que,
dentro do critério de que o errado é certo, está certíssimo, ao contrário do que exige esta minha birra, culpa da
professora Rosinha, por ter insistido em nos convencer de que "este" designa algo que está perto de mim, "esse",
algo que está perto de você e "aquele", o que está longe dos dois, e ainda a minha teimosia em achar que essas
palavras correspondem a situações reais da vida, não são meras invenções de gramáticos; e, de tão sectário que
sou nesta mania de preservar a língua, não suporto ouvir a expressão "isto não significa dizer" em vez de "isto não
quer dizer", que é o correto, ou era, além de expressão legítima, enquanto a outra é um anglicismo, mas que, por
isso mesmo, há quem considere ainda mais correta, porque estamos na época da globalização, o que torna mais
bobo ainda implicar com estrangeirismos, como aquele meu amigo que fica irritado ao ler nos jornais que "a
reunião da Câmara foi postergada para segunda-feira", em vez de "adiada", como sempre se disse e que facilita o
entendimento da maioria das pessoas, já que nem todos os brasileiros amargaram o exílio em países de língua
espanhola. Mas já quase admito ser muita pretensão teimar em dizer "o governador cogita de enviar à Câmara um
novo projeto de lei", pois isso de que o verbo "cogitar" rege a preposição "de" também é bobagem, coisa de gente
pretensiosa que precisa se impor às outras falando arrogantemente "correto", como se houvesse modo de falar
certo ou errado, de falar correto, pois a verdade é que tal pretensão oculta um preconceito de classe, uma
discriminação contra aqueles que não tiveram oportunidade de estudar e, por essa razão, não podem falar como
os que usufruíram do privilégio burguês, ou pequeno-burguês, de estudar gramática, o que vem acentuar a
injustiça social. Como se não bastasse serem aqueles pobres discriminados no trabalho e no conforto, ainda se
acrescenta essa discriminação, acusando-os de falarem mal a língua, da qual são eles de fato os criadores e que
foi apropriada pelos ricos e poderosos que agora se consideram donos dela, como de tudo o mais que existe
neste mundo, pois eles de fato não toleram a hipótese de que todas as pessoas sejam iguais e que todas elas
falem corretamente ainda que gramáticos elitistas insistam em dizer que falam errado só porque não falam
segundo as normas da classe dominante, que, além de impedir os pobres de estudar, acusam-nos de serem
ignorantes, atitude de fato inaceitável, pois sabemos que todas as pessoas são igualmente inteligentes e
talentosas, portanto capazes de criar obras de arte geniais, de conceber teorias iguais às que conceberam Galileu
e Einstein, e só não o fazem porque são deliberadamente impedidas de dar vazão a seu gênio criador; e também
neste caso se comete a injustiça de consagrar como gênios alguns homens privilegiados e não atribuir qualquer
valor aos milhões, perdão, às milhões de pessoas tidas como comuns, e só não consigo entender é por que os
linguistas que defendem tais idéias continuam a escrever corretamente tal como exigia minha professora do
colégio São Luís de Gonzaga, naqueles distantes anos da década de 1940... Diante disto, não está mais aqui
quem falou.